Distorções da renúncia fiscal no FMDCA

A política de atendimento a crianças e adolescentes no Brasil contém um mecanismo que gera distorções na destinação de recursos federais: os Fundos Municipais da Criança e do Adolescente (FMDCA). Esses fundos (assim como os fundos estaduais e o fundo federal) podem receber doações de pessoas físicas e jurídicas com desconto integral do valor doado no Imposto de Renda devido, respeitados limites máximos de doação.
Como os recursos doados são integralmente abatidos do imposto devido, eles constituem recursos públicos federais, que são antecipados pelos doadores e depois ressarcidos na forma de desconto integral no pagamento do IR. Ou seja, o doador, pessoa física ou jurídica, ao doar para um fundo municipal, decide em que município (e até em que projeto) aplicar recursos federais que, em vez de serem destinados segundo critérios gerais de atendimento a prioridades entre os municípios brasileiros, seguem o destino de decisões privadas.
Em 2013, segundo dados da Receita Federal, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, o total da renúncia fiscal em favor de fundos da criança e do adolescente foi de R$ 269,97 milhões. Desse total, o Estado de São Paulo responde por R$ 124,96 milhões, aproximadamente 46% do total. A soma de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná chega a R$ 204,62 milhões, mais de dois terços de toda a renúncia fiscal.
Embora pessoas e empresas possam fazer a doação a qualquer fundo do país, a regra geral é a destinação para os municípios em que residem ou mantêm suas atividades empresariais (há exceções, como empresas que abrem editais nacionais para destinar suas doações ou aplicam critérios para escolher o município ao qual fazer doação). Ao considerarmos os números da Receita Federal, percebemos que os Estados mais ricos da Federação acabam sendo beneficiados por recursos federais adicionais, numa proporção muito maior do que Estados mais pobres, que dispõem de menos recursos para desenvolver políticas públicas voltadas a crianças e adolescentes. O Maranhão, por exemplo, responde por 0,05% da renúncia fiscal com R$ 139 mil. O Acre, com R$ 21 mil, corresponde a 0,007%.
Essa distorção fundamental na destinação de recursos públicos é acompanhada por outro problema: a legitimidade dos Conselhos Municipais da Criança e do Adolescente, responsáveis pela gestão dos recursos dos fundos. Criados pelo ECA como órgãos paritários (50% governo e 50% sociedade civil), os conselhos municipais se tornaram órgãos corporativos de entidades não governamentais locais. São compostos, em geral (com poucas exceções), por representantes do governo e representantes de entidades de atendimento, as mesmas entidades que serão beneficiárias com seus projetos dos recursos dos fundos que gerem.
Finalmente, é preciso colocar em discussão o próprio formato de “projeto social”. Hoje, a Política de Assistência Social, estruturada como Sistema Único da Assistência Social, é responsável direta pela maior parte do que se costuma realizar em termos de “projetos sociais” para crianças e adolescentes. Muito embora a área de direitos das crianças e adolescentes seja mais ampla do que a Assistência Social, a maior parte dos projetos de entidades se encontra no campo assistencial (não por acaso, a regra geral é de que as entidades que participam dos Conselhos Municipais são também conveniadas ou recebem recursos assistenciais). A mesma observação vale para outras questões, ligadas ao atendimento e garantia de direitos de mulheres, idosos e pessoas com deficiência.
A diferença fundamental a ser observada é que na Assistência Social trata-se de uma política pública permanente e mantida com recursos governamentais federais, estaduais e municipais, com regras de partilha entre Estados e municípios, e com estrutura de programas e atividades (consolidados na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais)
A ideia de que o financiamento privado de projetos sociais constituiria um caminho para a garantia de direitos de crianças e adolescentes é uma herança, no formato, da Lei Rouanet para a cultura, e na ideologia, da desoneração do Estado em relação às suas responsabilidades sociais básicas. O Fundo Municipal da Criança e do Adolescente é por isso um modelo a ser repensado.

Elvis Cesar Bonassa
Doutor em Filosofia pela USP e diretor da Kairós Desenvolvimento Social