Entre a cruz e as drogas
Entre a cruz e as drogas, assim vivem crianças, adolescentes e jovens em muitos bairros que surgiram com o programa Minha Casa, Minha Vida. A situação se repete em dezenas de municípios: localizado em periferias, frequentemente nas bordas da zona rural, esses bairros possuem como polos organizadores da sociabilidade a igreja (em geral, neopentecostal) e o tráfico de drogas. As políticas sociais básicas (como educação, saúde e transportes) e a segurança pública, quando chegam, chegam bem depois. Essa situação é uma das causas da realimentação da violência e do envolvimento de adolescentes e jovens com atos infracionais e crimes.
O problema não é o programa habitacional em si, que garante o direito à moradia para a população pobre. O problema é seu modelo de implantação. Para garantir a viabilidade financeira de cada projeto, as construtoras precisam de terrenos de baixo custo - e isso já é suficiente para definir a localização distante, em áreas sem infraestrutura. As prefeituras municipais, por seu turno, não investem (ou não têm recursos para investir) na implantação de estruturas de políticas públicas nesses locais.
Resultado: um bairro com excelente arruamento, boas casas ou apartamentos (em muitos casos com energia solar e antenas parabólicas), mas sem a estrutura básica de cidadania e direitos sociais - garante-se somente a moradia, e isso não basta. A forma de constituição do grupo que irá morar nesses bairros aumenta o problema. São famílias de diferentes bairros da cidade, frequentemente escolhidas por sorteio, cuja única característica comum é a baixa renda - por isso formam um agrupamento, não uma comunidade. Não existem laços sociais prévios, convivências, experiências em comum.
Dito de outro modo, no linguajar socioassistencial, não existem vínculos sociais. Não existe uma estruturação comunitária. Nesse vácuo, quem provê a organização e a vinculação a valores e formas de vida social já na constituição do bairro são a igreja e o crime, em uma disputa que pode gerar sincretismo - o caso dos traficantes de Deus, no Rio de Janeiro, que atacam locais de culto de religiões africanas, dá a medida desse sincretismo.
Nessa organização social peculiar, as opções existentes para crianças, adolescentes e jovens são restritas. O “empreendedorismo” e os objetivos de consumo (estes sim, valores difusos e onipresentes, constituidores mesmo da forma geral da sociedade atual) convertem-se, majoritariamente, na decisão entre ou ganhar dinheiro supostamente fácil pela atuação em uma organização criminosa ou abraçar a crença na futura prosperidade garantida por Deus.
Não se trata de fazer um juízo de valor sobre a presença das igrejas ou criticar sua atuação, mas de compreender de que modo ela substitui (ao lado do crime organizado e do tráfico de drogas, a serem criticados e combatidos) os vínculos sociais de cidadania e a necessária mobilização e luta por direitos.
Pois está também ausente desse cenário qualquer forma de organização com um mínimo de foco político - no seu sentido mais amplo. Nos anos 70 e 80, o espaço de articulação era constituído por movimentos, associações e reuniões comunitárias. A forte migração de lideranças ali formadas para as estruturas de poder (secretarias municipais, conselhos e outras formas institucionalizadas de atuação política), esvaziou a organização e atuação de base.
Essa situação de muitos bairros surgidos com o Minha Casa, Minha Vida exige a formulação de alternativas, que tenham foco em comunidades específicas. Processos de urbanização de áreas ocupadas ou projetos que garantam soluções habitacionais para comunidades já formadas, com participação dos próprios interessados na formulação das propostas, podem colaborar para superar essa produção atual de áreas de vácuo de direitos. Ao mesmo tempo, buscar alternativas para o modelo de negócios, baseado hoje na lógica das empresas construtoras, permitindo a utilização de áreas mais estruturadas e centrais. É um princípio fundamental o de que os direitos são indivisíveis: garantir apenas moradia é não garantir nada.
Elvis Cesar Bonassa
Doutor em Filosofia pela USP e diretor da Kairós Desenvolvimento Social